terça-feira, 15 de março de 2011

PUBLICADA NO JORNAL NO ESPERANÇA 6

CONVERSA
Estou sentado no café Marialva. O relógio rodou, rodou e já estou novamente a olhá-lo. A igreja matriz onde todos nós fomos baptizados e casados talvez, continua a perder a pintura na parede, que está de costas voltada para mim. Ali, do lado de dentro é o altar-mor. Ainda me lembro sem necessitar de ir confirmar. Sinto uma alegria nostálgica, mas senão fosse assim, ou estaria quotidianamente habituado ou então algo de errado se tinha passado.
Olho o final de tarde. Tem um pôr-do-sol dos mais dourados que já vi. Tenho a presunção para dizer isto, mas está á frente dos meus olhos e não consigo evitar de tirar uma foto para levar comigo para a minha Lisboa… acolhedora. O meu amigo Cunha, companheiro dos cigarros fumados pela madrugada enquanto aquecíamos os pés mergulhados na água quente da sua banheira, admira-se porque ninguém fotografa o pôr-do-sol de São Pedro de Alva. Só eu, não é? O Cunha bebe o seu cafezinho já quase frio e sorri. Continua louco, pensa… Só ele para interromper uma conversa e fotografar algo que ninguém dá atenção. Podia ser amanhã. Vai ser igualzinho vezes sem conta nesta vida. Engano porque não vou estar cá para vê-lo. Assim levo um pouco daqui comigo, como também levo duas broas de milho para saborear durante a semana. São pedaços das minhas raízes, que ainda posso desfrutar.
Tantos anos e nunca me tinha sentado na esplanada num fim de tarde no Outono. A minha personagem Iracema ultimamente passa cá (não São Pedro de Alva, mas metaforicamente Conchinho) tardes e eu nunca tivera a vontade disso. Ou talvez ela tenha esse meu desejo. A lenha queimada, a natureza a desfazer-se das cores do verão e a deixar cair mortas, as folhas. Os casacos já saem á rua. Um ou outro conhecido passa e cumprimenta o Cunha, membro do poder político local. Sinto orgulho em estar aqui com ele. É bem tratado por quem passa. Ele, sempre cordial. Desde a infância que sorri mesmo para quem não tem intenção disso. Tem dificuldade em compreender comportamentos inglórios e viscosos. Algo está a mudar com a nova classe política do poder local. Quantos são como ele? Conheço alguns, mas este membro é peculiar.
Somos agora dois trintões felizes, o que é algo pouco visto. Sorrimos com as recordações e com os projectos concretizados. Não desisto de afirmar que não sou escritor, gosto de escrever de coração e seremos sempre a mesma alma, embora com responsabilidades acrescidas sempre que um texto ou uma ideia é aceite. O frio aperta, no entanto tenho a sensação que ficaríamos horas aqui na conversa. Cada um com as suas obras. O novo centro de saúde para ele, um novo livro para mim. Tão dispares que são os nossos caminhos, mas também tão paralelos e convergentes naquilo que conhecemos um do outro. É pura amizade, isto que sentimos. Não consigo voltar sem saber se está bem. Por vezes passo á sua porta só para confirmar que é ali que mora. Não duvido que continuaremos assim em elevada estima. Curioso!
O sol já foi. O chapéu-de-sol já foi tirado como se a temperatura ressequisse a lona da publicidade. Não precisamos de dizer nada, sabemos perfeitamente que este momento pode ser transformado numa cena hilariante. Não podemos cair nessa tentação. Por breves instantes rejuvenescemos a alma irrequieta, que se mantém dormente nos nossos rituais adquiridos com a idade adulta. A elevação de tudo isto é, sabemos, que não temos a mínima vontade em sermos sérios. Guardamos para nós essa intimidade.
 O relógio não parou e ainda não comprei um desenhado por Salvador Dali. A dobra do mostrador fazia-o parar na hora e no minuto ideal para não termos de terminar esta conversa e irmos à nossa vida.
Voltaremos!