quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

PUBLICADA NO JORNAL NOVA ESPERANÇA - 3

                   O BARCO A VAPOR

Uma esplanada à beira-mar num mês de Julho tem o ambiente intimista de verão misturado com um acontecimento de misticismo. As pessoas circulam e passeiam-se pelo espaço e calmamente recuperam do esforço e do stress da vida diária. A Praia da Luz é hoje conhecida dos portugueses pelo noticiário mediático importado do Reino-Unido como se fosse o conceito sublime de criar e inventar tempo de antena. À parte de todo o passado recente, pelas suas ruas encontramos sorrisos de várias nacionalidades europeias e latinas onde os portugueses, este ano são em maior número, se misturam e gozam as suas férias numa mescla de línguas maternas. O inglês vem vencendo a batalha com o português europeu e da América latina. Surge também um novo conceito de língua, o estrangeirismo algarvio, um desenrascanço de quem precisa servir bem e, em que a pressa de um ordenado, não permitiu a aprendizagem acertada da língua de Shakespeare. Pelo meio de um “No problema” vejo um petiz a sair alegre de uma loja de vendas oportunas de verão, daquelas coisas que no resto do ano só servem para ocupar espaço nas gavetas e prateleiras lá de casa.
O tempo percorre as nossas vidas, esconde-se atrás do trilho dia após dia e andamos sobre ele sem nos apercebermos do caminho percorrido. Quando menos estamos à espera zás, ele reaparece e faz-nos sentir melancólicos. Por breves segundos, não compreendemos a verdadeira razão de ele vir assim à tona do nosso pensamento.
Não estamos sozinhos… as nossas mãos estão entrelaçadas com outras mais idosas, enrugadas, de veias salientes. Outras mais novas fazem-nos alimentar estes passos. O petiz, a quem vou dar o nome Mário, talvez por sentir carência de alguém, saiu da loja de mão dada, à que julgo ser sua mãe, e na outra levava triunfante a nova aquisição. De dentro do saco de rede, desperta-me a atenção de um brinquedo em formato de barco de plástico, daqueles que nós em miúdos colocávamos na água, empurrávamos e imitávamos o som de um motor ruidoso, efeito produzido pelos nossos lábios a vibrarem. A felicidade parece ser a mesma. A corrida em direcção ao mar, quase certo, será para aplicar as técnicas de mestre de embarcação, há muito que aguardam pelo momento certo para se mostrarem à comunidade.
A possibilidade e facilidade no acto de comprar, hoje, substituem a participação da construção em comum de embarcações como esta. Aquela que guardo tem uma imagem bem definida nas minhas ideias. A minha mãe não foi à mercearia (um estabelecimento especializado em satisfazer todas as necessidades possíveis de satisfazer) comprar um, não foi a minha nem tinham por hábito as mães daquele tempo. Isto porque o mercado dos brinquedos estava ainda numa fase incipiente e o escasso dinheiro não permitia, pois estávamos na época do sufoco “reestrutural” da democracia e de uma descolonização à pressa, na satisfação de interesses, que deixaram graves problemas de adaptação nos dois lados da fronteira que separa e aproxima os os povos. O não consumismo de minha infância mantinha em nós uma faceta curiosa, pois o entrelaçar das mãos estava mais visível. Quando era possível, as nossas mães ficavam felizes por conseguirem proporcionar um momento diferente aos seus filhos e, estes sentiam-se pequenos príncipes por um dia. Estes momentos foram sendo cada vez mais possíveis, felizmente para a maioria dos miúdos, sinto aqui um vazio por não colocar o pronome possessivo na primeira pessoa do plural, mas em frente, que as memórias também são muito agradáveis. Na idade da segunda ou terceira classe sentia uma certa nostalgia latente nas pegadas incertas daquela idade. Até um certo dia, pensava que todos os miúdos tinham bicicleta como eu. Meu primo EDP, assim lhe chamávamos, pediu para dar uma volta. Eu, contrariado mas a não querer que ele me apelidasse de egoísta, coisa estranha de entender naquele momento, emprestei-lha um pouco cabisbaixo. Logo percebi que a vontade dele em aprender era muita. Na minha cabeça ficou uma dúvida, que foi esclarecida pelo meu avô, sempre atento ao seu primeiro descendente masculino. Explicou-me que se eu tinha era porque a minha família fez no passado alguns sacrifícios e separou-se fisicamente. A bicicleta veio de França em segunda-mão. Mas, a união que existe facilitou as brincadeiras e todos os meus primos lá de casa aprenderam naquela bicicleta.
A partilha, por cultura e por necessidade, permitiram que saibamos a existência de uma faceta interessante dos mais velhos ao imbuírem-se nas ruas, nas conversas (su)reais dos mais novos. A compra facilita. Aproxima no imediato porque a criança tem sempre pressa de colocar em pratica a evolução dos seus conhecimentos e para tal têm de ter à mão as ferramentas necessárias para construírem o seu mundo futurista.
Olhar o Mário despertou em mim algumas questões. Estaremos a esquecer algo? Terei sido o único que teve ferramentas para utilizar no meu mundo de real fantasia, criadas pelas mãos de um ente querido? Sorte a minha…
Penso que não. Será algo que gostamos de acreditar e alcançar numa determinada fase das nossas vidas. Num sábado daqueles em que nos visitamos entre amigos, deparo-me com o avô Joaquim, mestre em tempos na contabilidade de milhões, a plantar couve portuguesa. A minúcia chegava ao pormenor de colocar uma linha recta. A pergunta saiu-me de impulso, plantar couves com linhas? Pois… e nada mais me disse. Rápido percebi que algo mais estava para vir. Nós filhos sorrimos na varanda, aquecida pelo sol do 10 de Junho e refrescados por cerveja também portuguesa, e observámos o neto Gustavo a corrigir o alinhamento do pé torto da couve e a chamar a atenção, pois da próxima não poderia acontecer. Claro está que o mundo com o pé torto ficará coxo irremediavelmente.
O meu barco a vapor, feito da parte de cima de um ferro de engomar virado ao contrário…, ainda existe? Navegava no tanque de lavar roupa, do tempo sem Fagores, Philips ou Candys, e dava voltas sem fim, até que a água do depósito arrefecesse.
Sim ainda existe… acompanha-me nas minhas viagens e hoje quando abri a janela estava ancorado junto a uma bóia ao largo no mar azul à frente da minha varanda. Uma mão grande, calejada e gretada abriu a tampa do depósito e colocou água a ferver.
A mesma mão de sempre…

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

PUBLICADA NO JORNAL NOVA ESPERANÇA - 1

Um Pé Cá Outro Lá

Entrei no comboio com uma ideia no horizonte. Informar-me sobre o meu concelho para fazer um trabalho que me permita vir a ter orgulho. Falta à população conhecer a sua evolução e qual o seu papel no conjunto populacional enquadrada na pirâmide etária.
Para trás deixei a minha mulher com saudades que ainda não tinham começado. Fiquei triste porque não gosto que me diga adeus.
Não gosto.
Os seus olhos ficam tristes e o meu coração vai enfadado. Os meus passos mostram-se firmes para esconder a nostalgia daquele momento, mas vou!
Vou ao encontro de algo que não está lá… onde irei procurar. A pesquisa e a recolha de informação são uma justificação para rever tudo novamente, mais uma vez sem me cansar. Nunca acreditei nas palavras sobre as origens e regresso. Hoje reconheço a minha inocência. Tenho saudades e muitas.
O cheiro a frio do Mondego a subir pelas encostas de Penacova. Orgulho-me de saber pronunciar esta palavra. “Pênacóva”. Tem tanto significado como são Pedro de Alva. Foi lá que comecei a fazer-me homem á força.
Lisboa, rainha das invejas e de coração amargo, consome meu tempo. Estes regressos, mesmo efémeros, avivam a alma e repõem no seu lugar tudo aquilo que sou. Traz-me às narinas o cheiro a pinho queimado nas lareiras.
Não tenho receio dos sorrisos. Os penacovenses podem ser sérios, mas quando sorriem são francos. Fazem-no de olhos frontais e brilhantes. Não têm lânguida compaixão.
Na estação de Coimbra B encontro um conjunto de emoções agradáveis. Olho os prédios em volta e lá longe parece que a Marta sorri a acenar. Boa, não és efémera! Vejo-me fardado ao domingo à tarde de regresso à brutalidade da recruta. Ainda ouço os sargentos e cabos, homens de segunda a sexta dentro de muros, a gritarem pela formatura. Virilidades transversais na transição da geração da voz pela força para a geração da voz pelo poder da palavra.
O comboio ainda dá os mesmos solavancos. Pensava que o investimento público na modernização dos caminhos-de-ferro tinha sido mais eficaz. Já me tinha esquecido da senhora das queijadas que entra em Santarém, sai em Coimbra e vice-versa. A mesma luta de há vinte anos.
Na plataforma vejo os meus pais felizes. Estão felizes. Por um dia esquecem as dores, diabetes e rabugices. O seu filho vem a casa. Será sempre a casa. A constante luta pelo legado. O comboio ainda não parou e já sorriem. O dia, que esperam há meses, está finalmente a chegar.
Olho à volta. Reconheço alguns rostos. São desconhecidos, mas tenho a sensação que sou próximo de todos. Humildade e vida difícil…? Mais feliz e desprendida da vida com que estou a habituado a conviver. Apetece-me ser louco, apertar a mão a todos e desejar um bom dia. Sinto aquela paz própria do reencontro com as memórias.
O Mirante e o serpenteado do Mondego fazem-me saltar do arquivo da juventude as conversas e o convívio, por vezes faltando às aulas, simplesmente para me fazer acompanhar por colegas e amigos na envolvência da natureza humana. Porque é que se sai deste quase paraíso? Porque aceitamos viver num enquadramento social em que, por vezes, a sua rudeza e indiferença tanto contrasta com a boa disposição do vizinho do lado ou mesmo da menos importante intriga de quem tem ainda tempo para se dedicar a isso. Uma foto do meu avô, a calçar as botas de trabalho no campo, a trazer-me às lágrimas as palavras dele dizendo que aqui também se vive bem, com menos dinheiro e a chave na porta da rua (a segurança será outra decerto). O Vimieiro, o Reconquinho, as brincadeiras, a Barca Serrana e as modernas canoas…as gentes e os seus hábitos justificam aquilo que ainda sou, mesmo adulterado por hábitos consumistas e citadinos, louvo a existência passada por estas “bandas” (palavra muito utilizada pela minha avó, analfabeta na esferográfica mas conhecedora de uma vida a passar-nos ao lado).
 Boa bonança nestes passos que agora estão firmes. No entanto, um pé parece que nunca saiu daqui e o outro não regressou comigo.

MEUS PASSOS

Correr. Ando a correr. Desde criança que corro imaginando um caminho que escondesse as pegadas do destino. Tenho procurado um solo rijo para colocar os meus pés civilizados. Não consigo desenhar meus dedos na terra molhada pelas chuvas da primavera.
A ternura do teu olhar quase me move. As palavras ditas por ti trespassam a carapaça de todos os dias. As cicatrizes no teu rosto amolecem o meu ímpeto de autodefesa. A tua frágil figura convence os meus tendões inertes. A hipnose sublima-se na flacidez dos meus punhos.
A poeira que os meus passos largos levantaram foi para ti um guia por benfeitura e por malícia tua, aplicada nos momentos mais carentes, nos dias em que os argutos julgavam terem circunscrito as forças motrizes da minha ansiosa vontade. Não vale fatiar todo o granito do maciço antigo porque a cabeça do velho manter-se-á inerte sobre nevoeiros, nevões e sois de gerações.
Correr. Deixei de correr hoje. O que procuro está aqui. Dentro de mim está a formula prodigiosa capaz de me manter acordado e desperto para te mostrar a beleza comparada de granito bruto com o coração desprovido daquilo que não tenho por demérito nem por construção alheia.
Uma luz escavará o que só verei por egoísmo e que me transportará as léguas necessárias para que possa mostrar a capacidade dos meus passos…

domingo, 13 de fevereiro de 2011

PUBLICADA NO JORNAL NOVA ESPERANÇA - 4


A Lágrima que se solta

O movimento tira-nos do local, de um momento ou de um gesto, e coloca-nos num outro que não conhecíamos até então. A linha, que separa o que foi daquilo que é, mostra-se no horizonte e dela não podemos fugir ou sequer escapar. Tudo à volta é conhecido e do mesmo modo estranho e novo. É algo de difícil definição… a experiência vivida, curta ou longa pouco importa, revela-se insuficiente para fazer parar a engrenagem da vida. É impossível desviarmos o limite ou empurrá-lo para a frente, para lá da linha do horizonte…
Marchamos sob a vontade da esperança. A ela obedecemos sem termos alguma garantia de obtenção de algum resultado satisfatório ao nosso intento. Por vezes a sobrevivência fortalece esta esperança… embala-nos numa confiança desprovida de algo material a que nos agarremos. No entanto é a sua força que nos move, aquela que vai ficar para além da nossa existência.
Nascemos sob o impulso de um choro natural… talvez forçado e totalmente cultural. Será sempre a primeira palmada, se não viermos com disposição de soltar uma lágrima.
Choramos e continuamos a chorar. No apelo de atenção, sob a necessidade de alimento, de amor e conforto… o amor também é conforto, o mais fofo e apaziguador, que sustém a maioria das lágrimas!
A vida também chora, só não lhe damos espaço para se desmanchar. Não queremos que a vida chore, senão o que seria de nós? É impossível aceitarmos o nosso lastro enfraquecido. O que seriam os nossos passos sobre lágrimas? Marcas trémulas no solo barrento das nossas frustrações, alegrias e sonhos… talvez! Por vezes sozinho, o meu lastro enfraquece-se e confunde-se. Fica meio terra seca meio terra molhada.
O tamanho dos nossos dedos acompanha o crescimento do olhar, bi-focado, perante uma imagem em que se sente impotente. É única e parece não haver outra para substituir a que temos à nossa frente. Da infância até ao adulto passam anos que rapidamente se tornam segundos. Do choro como mensagem passamos ao impedimento por questões viris ou embaraçosas. A caminhada torna-nos mais duros, mais conscientes ou mais elevados? Endurecemos a postura para encerrarmos as fraquezas da alma. Tornamo-nos mais experientes e daí extraímos a conclusão de que isso nos coloca num patamar de não demonstração da lágrima. Sangramos internamente, quase sufocamos o nosso pobre alento, na tentativa de estrangular publicamente as emoções.
As rugas no rosto e nas mãos, as madeixas naturais e o olhar inconfundível de quem já viu muito, do que ficou para trás, transmitem a interligação com aquilo que provavelmente iremos encontrar no futuro. Talvez com outras roupagens, talvez com outras molduras, mas de certo irão provocar emoções idênticas às daqueles que já chegaram e nos aguardam pacientemente.
Fixo o olhar numa foto de uma anciã kosovar em pranto de quase descontrolo, sustentado pela vergonha de se ter exposto à objectiva de um fotógrafo estranho e estrangeiro. As rugas profundas, as suas mãos que não tiveram tempo de se lavar agarram em concha as lágrimas vadias e desertoras do seu olhar, como se, nos entre-dedos, quisesse levar a prova… de que o choro de um velho também é possível. Na mais extrema confusão de emoções e sentimentos, de alguém que se vê espoliado de tudo em que acredita… caminhada, lar, espaço, tempo… talvez família, de certo lhe retiraram a esperança e por fim a vida. Resta o corpo nas vestes tradicionais de lenço colorido envolto nos cabelos baços, como se das suas cores e padrões desenhados fosse sair a semente de algo a que se agarrar.
Quando um velho chora… chora porque para ele nada mais parece ser possível. O ciclo desta passagem não se fecha, revela-se como um grito de desespero e impotência para com os seus semelhantes de espécie.
Quando um velho chora fá-lo por ser elevado e já não sentir ser importante abafar a manifestação dos estados de alma, que possam condicionar qualquer grilhão de conduta social. A lágrima de um ancião reflecte a ponte que cada um de nós terá de construir na tentativa de encurtar a distância da vida vivida para a vida prometida.