segunda-feira, 28 de novembro de 2011

PUBLICADA NO JORNAL NOVA ESPERANÇA - 14

Biblioteca Itinerante

As feiras do livro colocam-nos em contacto com as novidades literárias e também permitem ao leitor aproximar-se de alguns escritores. A mística que separa a escrita do seu autor é encurtada pelas várias sessões de autógrafos porém alguns escritores necessitam do distanciamento para assim conseguirem alcançar o pleno prazer e empenho nas suas letras. Os livros serão sempre o resultado de tudo isso embora sinta que a relação autor – escrita – leitor esteja a desprezar a componente do autor. Encontramos cada vez mais cópia, plágio e usurpação de autoria.
Tenho também dificuldade em compreender o porquê da ação do homem quando vejo livros a serem despojados do seu real valor quando são abandonados no papelão para reciclagem. Assim, a sua missão de registo de pensamentos e da evolução humana perde-se. Ficam esquecidos à espera de serem transformados em papel de embrulho ou em caixas para mudanças.
 A origem do livro antecipa-se à antiguidade clássica e permitiu à escrita alcançar o leitor de um modo mais fácil em fazer e transmitir a mensagem. Poderemos dizer que as tabuletas de argila ou pedra foram os precursores do livro? Certamente foram os primeiros suportes da escrita. No entanto os Volumen, cilindros de papiro, são o primeiro formato assemelhado a um livro que, ao ser desenrolado, permitia a leitura do seu conteúdo e poderia atingir sete metros de comprimento.
O pergaminho, couro de bovino e de outros animais, foi inventado na cidade de Pérgamo na Ásia menor. Veio substituir o papiro e o seu uso atravessou a Idade Média. A sua maior resistência permitiu o desenvolvimento do formato Códex que substituiu o Volumen. O livro tornou-se um conjunto de folhas mais fáceis de costurar em couro.
Ao Ts’ai Lun, alto funcionário da Corte chinesa do imperador Chien-Ch’u da dinastia Han (206 AC a 202 DC), é atribuída a invenção do papel no ano 105 DC. Foi matéria conseguida através do esmagamento e cozimento de fibras. A introdução na Europa desta nova superfície de trabalho está relacionada com um rapto executado por Árabes a dois chineses que, em troca da sua liberdade, revelaram o segredo que tinha seis séculos. Os europeus começaram a utilizá-lo dez séculos depois da sua invenção.
O novo formato de livro surgiu da década de 70 do século XX. Michael Hart é conhecido por ser o fundador do projeto Gutemberg. Consiste em tornar os tradicionais livros em formato digital. O primeiro texto digitalizado foi a Declaração de independência dos Estados Unidos da América. Recentemente a empresa Apple lançou no mercado de equipamentos electrónicos de uso individual o Ipad onde num espaço de uma palma da mão podemos armazenar uma biblioteca. No entanto, o trajeto que a criatividade humana percorreu na satisfação das suas necessidades, fruto da sua própria evolução, comporta um conjunto de etapas antecedentes e importantes para hoje conseguirmos virar uma página com um simples gesto de arrastar uma imagem num monitor. De entre estas etapas poderemos incluir o projeto da Fundação Calouste Gulbenkian de levar até junto de todos os carenciados no último quarto de século XX, o bem precioso de leitura a custo zero para o leitor. O interessado poderia às quintas-feiras, se a memória não me engana, deslocar-se junto da escola primária e aguardar durante a tarde que chegasse a carrinha Citroen de faróis redondos, cor de tijolo e de laterais caneladas. De lá de dentro saltavam histórias e todo um mundo de lugares e regiões que, provavelmente não terei oportunidade de visitar mas que me eram apresentadas na experiência vivida, descrita ou inventada pela mão de génios, candidatos a ídolos tal como Herger e a sua obra Tintin ou mesmo Julio Verne e as suas viagens. Encontrávamos também os clássicos da literatura portuguesa e internacional. O motorista no momento em que abria a porta da sua Biblioteca Itinerante transformava-se numa espécie de Atticus, o homem romano com grande sensibilidade para o mercado das obras literárias, que no caso português tinha a afectividade e a proximidade para disponibilizar livros de acordo com o interesse de cada cliente. O preço era o laço que se estabelecia entre o funcionário e o leitor em que este, se comprometia a devolver o livro nas mesmas condições de manuseamento em que o recebeu e no prazo estabelecido, podendo sempre ocorrer um prolongamento se fosse oportuno.
Na feira do livro de Lisboa do ano passado fui assaltado no pensamento por uma recordação ao ver novamente a mesma carrinha Citroen no centro da cidade em que o Atticus era uma Senhora sorridente com a dupla função de apresentar para venda as obras editadas pela Fundação Calouste Gulbenkien e de refrescar a memória das pessoas ao expor a viatura, ícone de uma geração e do povo do interior português profundo onde as bibliotecas escasseavam assim como, a capacidade económica para considerar o livro um bem essencial à vida quotidiana.
É impossível fisicamente vermos Steve Jobs sentado na Citroen a abrir-nos a porta com a sua invenção por catálogo na mão mas poderemos visualizar que é possível o Ipad transportar até às gerações vindouras a missão de registo de todo o trajeto evolutivo das espécies.