terça-feira, 16 de agosto de 2011

Publicada no Jornal Nova Esperança - 11


SER CRIANÇA



Desfolho um livro, Portugal Património, e nele descubro passagens da minha infância. Passar folha-a-folha colocou em mim a felicidade de quem vê o pedaço de terra que o viu crescer inscrito num anal de história. O primeiro pensamento foi de que cresci numa vila com património de valor, referência arquitectónica e cultural.

De dentro do livro saltaram um sem número de momentos e memórias que me fizeram parar o tempo! Por breves segundos lutei comigo no sentido de me obrigar a ser novamente criança. Tão grande que parecia ser a vila. Imaginava como seriam os espaços além daquilo que me era permitido ver. Queria ir pelo meu pé, mas tinha o espaço controlado e os minutos contados. Nem todos estão abertos ao espraiar do mundo da criança. A imaginação ultrapassa todos os entraves.

As recordações… conseguem parar o tempo… os torrões de açúcar amarelo que a Dona Letícia Videira me deixava tirar do compartimento de madeira alinhado dentro da mercearia. Tenho ainda vontade de subir à torre da igreja e ficar lá a ver a vila em movimento. O cheiro a madeira velha e a cera que emanava da entrada da sacristia adocicava a curiosidade. Gostava de ver o que está dentro daquelas grandes arcas. Perguntei uma vez onde guardavam o presépio… tinha vontade de o reconstruir e colocar um lago com peixes por baixo do altar.

As páginas deste livro… continuam a revelar as minhas memórias, que saíram de dentro a uma velocidade estonteante. Por breves momentos quase vejo a carreira e as minhas primeiras viagens para fora do mundo circunscrito da vila. O olhar incessante para qualquer coisa… faz ainda interrogar quem não percebe o que vai dentro da cabeça de uma criança.

Os gritos de liberdade quando saíamos do recreio e imprudentemente corríamos pelas imediações da escola a jogar à bola, ai o senhor padre… o senhor doutor passa e sorri com tal reboliço à porta do seu consultório. É a alegria de uma comunidade por ter crianças todos os dias aos gritos pelas ruas.

A fruta rapinada pelo caminho. Todos à uma como se a necessidade fosse geral. Os cinquenta centavos para jogar matraquilhos no café Marialva. O giz de jogar à macaca esquecido num bolso das calças, lavadas à mão no tanque de água fria. Ainda tentei saltar ao elástico, “coisas de meninas” diziam, fez-me cair com os pés atados pela habilidade com o pé à esquerda e à direita.

A nogueira plantada no recreio da escola e, todos os anos, esperávamos para ver o que eram nozes penduradas. A separação no final de um dia de aulas em grupos consoante as aldeias… formigas saltitantes na berma da estrada.

Olhar a vida sem a responsabilidade de um adulto é decerto o enquadramento psicológico mais favorável quando se é criança.

Hoje ser adulto também é ser criança. É carregar para a imensidão deste nosso mundo o solitário estado de alma, por vezes através de recordações ou acordando o miúdo que persiste em nós… as garotices de uma adulto são a prova existencial dessa duplicidade de seres que coabitam nos nossos corpos. O emergir desse garoto é o resultado de uma luta constante, que decorre entre o decoro e a decência para quem defende a compostura alinhada.

Percorro alguns corredores com imagens da vida passada, sempre que existe a vontade saudosista da liberdade, que a idade de criança nos permite e nos ajuda a manter a sanidade da felicidade.

Poderiam existir muitas mais crianças entre nós!