terça-feira, 13 de setembro de 2011

PUBLICADA NO JORNAL NOVA ESPERANÇA 12

Praia da Foz do Alva

A água corre lenta sem vontade de alcançar o seu destino e a vida vai a galope agarrada à crina do nosso desalento ao olharmos o futuro próximo sem um vislumbre agradável daquilo que nos espera. O desnorte ganha forma todos os dias. Já é possível dizer-se todo o tipo de barbaridades sobre a matriz do povo e do Estado-nação vivo, mas adoentado a quem querem arrancar pedaços aos seus pilares e, supostamente, verem desmoronar-se. Os que estão fora aguardam abutremente. Os que estão dentro reviram o branco do globo ocular na procura tresloucada de justificar a responsabilidade noutros costados. De repente o que é nosso tem valor e venha de lá o comprador de produtos nacionais.

Certo… por um flash das recordações daquelas mais remotas e escondidas trago à conversa momentos alegres, quando não havia carro em casa, quando não sabia o que era uma agência de viagens e que julgava não conseguir viajar de avião. As férias faziam-se em troca de espaços com familiares das grandes cidades e vice-versa. Olho para a distância tempo como sendo uma eternidade percorrer o que se consegue em duas horas pela autoestrada.

Em dia de semana nos meses de verão o primeiro autocarro da manhã transportava-nos para além da nossa fronteira diária como se fossemos dar a volta ao mundo no entanto, só dobrávamos a esquina remota da serra. As mulheres levavam as trouxas de roupa à cabeça e os homens o cesto do farnel ao ombro. Eu seguia pela mão disponível. Recordo-me que detestava os pacotes de 100ml de leite com morango. Ainda hoje é-me impossível o cheiro. O preço mais barato obrigava à compra. Decerto havia mais quem não gostasse porque estava sempre mais barato. Era raro conseguir do orçamento um pacote de waffles cobertos com chocolate e que tinham um pacote dourado.

O autocarro começava a rolar às sete e quinze minutos e nós esperávamos á entrada da vila. Por vezes parecia uma sementeira de cogumelos pois, ainda era época de colocar carga na grelha do tejadilho. Naquelas manhãs não havia birra nem sono. A descida para o rio era empolgante. A paragem depois da ponte era apertada e mal permitia a saída. O trânsito parava, o motorista resmungava porque tinha de subir e atirar as trouxas da roupa. Sentia pressão por as restantes viaturas estarem bloqueadas.

O rio estava já ali mas era impossível saltar logo lá para dentro. A água estava ainda gelada e tínhamos de ajudar a encontrar a melhor pedra para que a roupa fosse lavada rapidamente e as mulheres pudessem refrescar-se a meio da manhã nas águas límpidas e despoluídas do Alva. Os homens procuravam lenha nas bermas do rio e preparavam uma fogueira para quando fosse hora a acenderem e fazerem os grelhados. Alguns arriscavam e só comiam o que pescavam. Nem sempre os dias eram de fartura.

O melhor lugar para dar saltos era debaixo da velha ponte que ruiu por incúria técnica e por falta de manutenção durante a construção da nova estrada. O pedregulho ficou para sempre escondido. Era o local onde se saltava e á noite se contavam estrelas. Era um ponto de convívio da Beira Litoral Interior. As dificuldades de orçamento familiar não permitiam ambientes luxuriantes. O descanso era alcançado através de espaços naturais, por vezes perto da habitação. Onde hoje, provavelmente, existem pedras sujas e abandonadas perpetuaram-se momentos de cariz naturista, natural e normal por uma comunidade, que caminhava há trinta anos para uma abertura compassada e pouco preocupada com as dificuldades deste nosso quotidiano. Forçosamente prescrevo uma realidade adversa a futuros caminhos delirantes e autistas. Saudosamente deverei percorrer caminhadas a tentar colocar os meus pés sobre pegadas sólidas na tentativa de encontrar as pedras onde outrora as nossas mães colocaram roupa ao sol, enquanto nos atirávamos para a água corrente.

O enrolar das trouxas representava o regresso ao ponto de partida. Hoje o retorno à circunstância dessa época será penoso e obrigará a um refazer mental da realidade e à reposição concreta do quadro social, do qual ao sairmos deveríamos ter tido a preocupação de não subjugarmos o futuro a uma vontade que nos é alheia.