domingo, 13 de fevereiro de 2011

PUBLICADA NO JORNAL NOVA ESPERANÇA - 4


A Lágrima que se solta

O movimento tira-nos do local, de um momento ou de um gesto, e coloca-nos num outro que não conhecíamos até então. A linha, que separa o que foi daquilo que é, mostra-se no horizonte e dela não podemos fugir ou sequer escapar. Tudo à volta é conhecido e do mesmo modo estranho e novo. É algo de difícil definição… a experiência vivida, curta ou longa pouco importa, revela-se insuficiente para fazer parar a engrenagem da vida. É impossível desviarmos o limite ou empurrá-lo para a frente, para lá da linha do horizonte…
Marchamos sob a vontade da esperança. A ela obedecemos sem termos alguma garantia de obtenção de algum resultado satisfatório ao nosso intento. Por vezes a sobrevivência fortalece esta esperança… embala-nos numa confiança desprovida de algo material a que nos agarremos. No entanto é a sua força que nos move, aquela que vai ficar para além da nossa existência.
Nascemos sob o impulso de um choro natural… talvez forçado e totalmente cultural. Será sempre a primeira palmada, se não viermos com disposição de soltar uma lágrima.
Choramos e continuamos a chorar. No apelo de atenção, sob a necessidade de alimento, de amor e conforto… o amor também é conforto, o mais fofo e apaziguador, que sustém a maioria das lágrimas!
A vida também chora, só não lhe damos espaço para se desmanchar. Não queremos que a vida chore, senão o que seria de nós? É impossível aceitarmos o nosso lastro enfraquecido. O que seriam os nossos passos sobre lágrimas? Marcas trémulas no solo barrento das nossas frustrações, alegrias e sonhos… talvez! Por vezes sozinho, o meu lastro enfraquece-se e confunde-se. Fica meio terra seca meio terra molhada.
O tamanho dos nossos dedos acompanha o crescimento do olhar, bi-focado, perante uma imagem em que se sente impotente. É única e parece não haver outra para substituir a que temos à nossa frente. Da infância até ao adulto passam anos que rapidamente se tornam segundos. Do choro como mensagem passamos ao impedimento por questões viris ou embaraçosas. A caminhada torna-nos mais duros, mais conscientes ou mais elevados? Endurecemos a postura para encerrarmos as fraquezas da alma. Tornamo-nos mais experientes e daí extraímos a conclusão de que isso nos coloca num patamar de não demonstração da lágrima. Sangramos internamente, quase sufocamos o nosso pobre alento, na tentativa de estrangular publicamente as emoções.
As rugas no rosto e nas mãos, as madeixas naturais e o olhar inconfundível de quem já viu muito, do que ficou para trás, transmitem a interligação com aquilo que provavelmente iremos encontrar no futuro. Talvez com outras roupagens, talvez com outras molduras, mas de certo irão provocar emoções idênticas às daqueles que já chegaram e nos aguardam pacientemente.
Fixo o olhar numa foto de uma anciã kosovar em pranto de quase descontrolo, sustentado pela vergonha de se ter exposto à objectiva de um fotógrafo estranho e estrangeiro. As rugas profundas, as suas mãos que não tiveram tempo de se lavar agarram em concha as lágrimas vadias e desertoras do seu olhar, como se, nos entre-dedos, quisesse levar a prova… de que o choro de um velho também é possível. Na mais extrema confusão de emoções e sentimentos, de alguém que se vê espoliado de tudo em que acredita… caminhada, lar, espaço, tempo… talvez família, de certo lhe retiraram a esperança e por fim a vida. Resta o corpo nas vestes tradicionais de lenço colorido envolto nos cabelos baços, como se das suas cores e padrões desenhados fosse sair a semente de algo a que se agarrar.
Quando um velho chora… chora porque para ele nada mais parece ser possível. O ciclo desta passagem não se fecha, revela-se como um grito de desespero e impotência para com os seus semelhantes de espécie.
Quando um velho chora fá-lo por ser elevado e já não sentir ser importante abafar a manifestação dos estados de alma, que possam condicionar qualquer grilhão de conduta social. A lágrima de um ancião reflecte a ponte que cada um de nós terá de construir na tentativa de encurtar a distância da vida vivida para a vida prometida.

Sem comentários: