sexta-feira, 15 de abril de 2011

PUBLICADA NO JORNAL NOVA ESPERANÇA - 9

As Pedras da Vida

A construção das nossas vidas olhadas de longe podem parecer castelos sem Nobre. Sabemos nós e cada um por si a dificuldade que foi erguer e manter esse edifício durante tanto tempo.
Os dias transformaram-se em pedras, os sonhos em argamassa e a vontade persistente será sempre o telhado. Os materiais escolhidos por cada um são diferentes, assim como é a passagem daquilo que é sonhado para a concretização.
No percurso trilhado por todos nós sabemos o valor de ser afortunado ou não. Na simbologia das vidas por casas, conseguimos construir algo proveitoso, mas nem todos conseguiram acabar a sua e aqueles como eu, que ainda estão na fase do revestimento, compreendem o quão grandioso é estar na vida rodeado pela amizade de um grande punhado de viventes da mesma geração.
Olhar hoje os rituais de convívio permite-nos a nós, a rondar quarenta anos, comparar a singularidade das vivências do passado e acreditar que os serões nas adegas são algo que se está a perder. Foi durante gerações o ponto alto das incursões nocturnas pela Vila e arredores. A modernidade trouxe para alguns o embelezamento desses espaços e a transformação em bares privados demonstra qualquer coisa de elitismo.
Da vida passada ficam instantâneos que são recordados por vezes com saudade, por vezes orgulhosamente por pertencer a um grupo de utilizadores das adegas disponíveis na nossa juventude. Prevalece a adega do (Senhor) Alfredo. Naquela rua, que nem é centro nem arredor, estão impregnadas nos muros e no alcatrão passagens da vida, que olhadas com os olhos de hoje, seriam estranhos momentos de convívio entre miúdos a pretenderem ser homens.
A falta de alternativa era visível. As deslocações para fora do nosso mundo eram tão mais difíceis como era o angariar algum dinheiro extra para custear os nossos desejos de aventura. Na resolução deste pequeno pormenor existia a transferência de verbas do bolso de alguém para o de outro. A partilha das circunstâncias era uma necessidade obrigatória entre os elementos deste grupo. Os nomes deles pouco importam a esta crónica, pois os intervenientes, rápido se reconhecerão e o interessante é o espírito por nós partilhado. Não é saudosismo melancólico…
Circular na vida comporta escolhas de momento, em que o distanciamento é o elo mais fraco do relacionamento futuro. É impossível entrar pelas portas (inexistentes) escancaradas e perceber que passámos… por um momento da comunidade, que pode compreender ou aceitar os impulsos juvenis, mas hoje as portas que estão fechadas são as de dentro da vila. O café Neves está encerrado. Nada será idêntico. A camisa de linho da Dona Aurora à janela, a pedir silêncio, não voltará a ser vista. O ressonar do Senhor Ramiro calou-se e nem o chafariz tem já a vida de antes. A água está ferrugenta e nem dá prazer abrir as torneiras e molhar quem lá se senta. Resta ainda o cheiro a pão quente. As paredes e janelas do café Neves estão revestidas a panfletos novos colados por cima de outros mais velhos. Será este o destino traçado… novos a substituírem aqueles que nasceram muito antes.
“Houvera quem me ensinara” e conseguiria apoderar-me do ponteiro das horas, o dos minutos não… pois os momentos, por ele contados, são imensos e orgulhosamente me recordo (estarei confuso?) do carnaval e dos vasos em volta do chafariz e o mais pesado no seu topo. As teias de aranha cresceram por trás deles nas varandas e escadas de São Pedro de Alva e não há quem, pelo menos uma vez por ano, os remova e levante alvoroço na vila. Talvez fizesse bem um abanão para despertar esta comunidade que parece em jeito de adormecida.
A vida que a Vida tinha no centro da vila…
Poderemos parar um dia? Para limparmos algumas teias de aranha das memórias e mover o presente para trás das costas, recuperar o passado daquilo que foi para todos nós. No entanto quase por vergonha ou falta de tempo repelimos parte das pedras e da argamassa.
Não vale… arrancar pedras à casa!

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